Temporada 2024

Imaginar passados, gestar futuros

Todo esforço de nomeação é também uma alavanca poética de reinvenção, uma espécie de gênesis de uma episteme, ou de um certo olhar sobre o mundo que convoca, inevitável, o espírito de seu tempo. A inspiração desta temporada do Theatro Municipal de São Paulo reflete o caminho trilhado nessa busca. Um percurso que teve início nas imagens da Inteligência Artificial, no centenário do manifesto surrealista de André Breton e nas representações imaginadas de futuro, deslocando-se para uma rota que, quase inadvertidamente, já vinha sendo percorrida desde 2021, quando apresentamos no palco do Theatro Municipal a cantata concertante Icamiabas, de João Guilherme Ripper, seguida de projeções de trabalhos do coletivo de artistas liderados por Ibã Huni Kuin e dos Kariri-xocó, realizando um Toré.
As Icamiabas povoaram durante séculos o imaginário dos nossos colonizadores, assim como, ao longo do tempo, outros grupos de guerreiras temíveis assombraram e fascinaram o imaginário masculino: as Amazonas gregas, as Valquírias da mitologia nórdica e as Agojie do império Daomé, estas últimas as únicas a deixar vestígios concretos de sua existência.
Como uma boa barcaça rumo ao futuro, o Theatro Municipal revigora-se dessas mulheres míticas de diferentes tempos e lugares, impregnando de sua força e tenacidade uma programação estruturada sobre grandes aparições femininas e, por que não, feministas. Ampliar a presença negra, indígena, migrante, queer e feminina nesta instituição vem norteando nossa bússola de navegação, em busca de novos mundos, mais plurais e definitivamente mais inclusivos. Afinal, se o Theatro se destina a todos, é porque todos devem estar representados nele, e por ele.
É importante dizer que este retorno ao caminho já percorrido, mas nunca nomeado, deu-se uma vez mais pelo diálogo das lideranças dos corpos artísticos com um comitê curatorial transdisciplinar composto por Ana Teixeira, pesquisadora em dança, artista e professora universitária; Elodie Bouny, violonista e compositora; Gabriella Di Laccio,  cantora lírica, ativista e criadora da fundação internacional Donne, Mulheres na Música; Isabel Santos Maier, educadora e gestora da rede LiteraSampa, e Ailton Krenak, escritor e filósofo.
O resultado revela uma produção historicamente invisibilizada, mas não menos prolífica e significativa, trazendo para a temporada de assinaturas de 2024 um número impressionante de compositoras, diretoras e artistas, tanto nas óperas quanto na programação da Orquestra Sinfônica Municipal, do Balé da Cidade de São Paulo e do Quarteto de Cordas. A temporada de óperas apresenta um repertório variado com grandes clássicos do gênero que trazem protagonistas femininas indóceis, incluindo, também, uma composição comissionada e a recuperação histórica de uma obra brasileira. As parcerias com outras instituições são fortalecidas com a realização de coproduções, convidando tanto diretores cênicos já bem conhecidos da casa quanto artistas que farão sua estreia no palco do Theatro, para que o público possa acompanhar e desvendar novos olhares.
Nosso ano se inaugura com Madama Butterfly, com direção cênica de Livia Sabag, comemorando o centenário de morte de Giacomo Puccini, exaltado também em um programa em concerto de La Bohème, no mês de dezembro. Na sequência, uma montagem da fulgurante Carmen, de Georges Bizet, com direção cênica de Jorge Takla, seguida da ópera O Contractador de Diamantes, de Francisco Mignone – coprodução que resulta da profícua parceria com o Festival Amazonas de Ópera, com direção cênica de William Pereira. Na versão do Theatro Municipal de São Paulo, uma congada adicionará à cena diferentes camadas e intersecções de diálogos artísticos.
A outra coprodução do ano apresenta em programa double bill, uma obra de duas mulheres, em resposta a preceitos e conteúdos desatualizados em relação a nosso tempo: Malin Bång compôs Judith’s Gaze (O Olhar de Judith), com libreto de Mara Lee, para ser apresentada na sequência de O Castelo de Barbazul, de Béla Bartók, revelando um lado alheio da cruel história do castelo das sete portas trancadas. A montagem é fruto de uma parceria do Theatro Municipal de São Paulo com o Folkoperan de Estocolmo, Suécia (onde estreou em 2023), e o Muziektheater Transparant, da Bélgica. A encenação é de Wouter Van Looy, diretor belga de óperas e espetáculos musicais especialmente engajado em ampliar o acesso do público a repertórios contemporâneos, com larga experiência em montagens de diferentes formatos, que realiza pela primeira vez uma montagem no Brasil.
Na sequência da programação de óperas, uma das mais prolíficas e reconhecidas encenadoras brasileiras, Christiane Jatahy – artista associada ao Odéon Théâtre de L’Europe de Paris desde 2016 e laureada, em 2022, com o Leão de Ouro da Mostra Internacional de Teatro de Veneza pelo conjunto de sua obra –, faz sua estreia como diretora cênica no Theatro Municipal de São Paulo. Especializada em estilhaçar fronteiras em cena – estabelecendo diálogos improváveis entre passado, presente e futuro – e explorando a porosidade entre linguagens como a cinematográfica e a teatral, Christiane Jatahy traz para o Theatro uma encenação de Nabucco, de Giuseppe Verdi, ovacionada por crítica e público no Grande Teatro de Genebra em junho de 2023, lançando um olhar crítico sobre a ilusão criada pelas relações de poder.
A montagem escolhida para ser reencenada no Theatro em 2024 foi a ópera-tango María de Buenos Aires, de Astor Piazzolla, dirigida por Kiko Goifman e Ronaldo Zero em 2021. Em cena, as criaturas da noite portenha imaginadas por Piazzolla ganham vida numa criação que subverte linguagens entre o cinema e a ópera, com o protagonismo transgressor de uma prostituta – María – invocando um ritual que sublinha a dimensão sombria do real para resgatar a alma perdida da cidade. Na montagem imaginada por Goifman, trabalhadoras do sexo do cotidiano performam imagens que reinventam e transpõem o imaginário de Piazzolla.
A programação sinfônica e lírica começa com o concerto de aniversário da cidade de São Paulo, apresentando Te Deum, de Bruckner, no ano em que comemoramos 200 anos de seu nascimento, e a Nona Sinfonia, de Beethoven, com a participação da OSM, do Coro Lírico e do Coral Paulistano, sob a regência do maestro Roberto Minczuk. Destaca-se ainda, no decorrer do ano, a presença das renomadas compositoras Tania León, Marisa Rezende, Joan Tower, Camille Pépin, Germaine Tailleferre, Maria Theresia von Paradis, Leokadiya Kashperova, Léa Freire, Kaija Saariaho e Alma Mahler, além dos célebres compositores já conhecidos do público, como Mahler, Saint-Saëns, Mozart e Brahms. A obra Rapsódia para Novos Tempos, comissionada para Marco Scarassatti, Michelle Agnes Magalhães e Rubens Russomanno Ricciardi, terá sua estreia mundial na temporada da OSM.
A temporada propiciará também novas descobertas, como um concerto inédito concebido pelo artista visual Nuno Ramos – uma partitura sonora do filme Terra em Transe, de Glauber Rocha, incluindo músicas, textos, sons e vozes, executada pela Orquestra Sinfônica Municipal (OSM), pelo Coro Lírico e por solistas convidados. Outra montagem especial será A Sagração da Primavera, de Stravinsky, com intervenção concebida por Ailton Krenak em parceria com o artista visual Ernesto Neto.
Pelo segundo ano oferecemos ao público um programa de assinaturas do Quarteto de Cordas da Cidade de São Paulo. Desta vez, a série escolhida contempla quintetos para piano de Brahms, Respighi e Dvorák, com a participação de pianistas convidados como Erika Ribeiro, indicada ao Grammy Latino, que vem se destacando por diluir as barreiras entre o popular e o erudito com refinamento e versatilidade; Rubia Santos, professora da Universidade da Costa Rica; Karin Fernandes, uma das pianistas brasileiras mais prolíficas em gravações, com um repertório vasto que dá especial atenção à música contemporânea e a compositoras e compositores do Brasil, e a curitibana Martina Graf, que se aperfeiçoou na Alemanha e se especializou em música de câmara, tendo se apresentado em diversos países europeus.
O Balé da Cidade de São Paulo apresenta sua primeira temporada sob a direção artística de Alejandro Ahmed. Para além do programa no palco do Theatro, que inclui novas colaborações com relevantes artistas da cena contemporânea, como Judith Sánchez Ruíz, Cristian Duarte, Marcela Levi e Lucía Russo, apresentaremos também a continuidade do trabalho desenvolvido com Eduardo Fukushima e Beatriz Sano, mostrado em um primeiro momento, em 2023, na Cúpula do Theatro, e remontagens recentes, como o trabalho Variação, de Davi Pontes. No momento em que levantamos questões ligadas a novas configurações de corpos em tempos de Inteligência Artificial e avanços da robótica como possibilidade de estudos e ampliação do sentido técnico e artístico da dança, o BCSP avança no campo da pesquisa de movimentos, realizando workshops com artistas como Christos Papadopoulos e residências artísticas para rever os sentidos de sua atuação como companhia. Tal mergulho é possível graças ao engajamento dos bailarinos e o desejo comum de atualizarem seus modos de criação e produção, reposicionando, assim, o BCSP na cena contemporânea.
Conta a lenda amazônica que, uma vez por ano, as valentes Icamiabas se uniam aos valorosos Guacaris, à beira do Rio Amazonas, e de sua união nascia o futuro de uma nação guerreira e insubmissa. Na Temporada 2024 do Theatro Municipal, essa união acontecerá uma vez mais entre artistas e público. Esperamos que, ao visitar esta casa, possam se emocionar com o resultado do trabalho e a dedicação da equipe de colaboradores e artistas do Theatro Municipal de São Paulo. Cada repertório, compositor, artista convidado, solista e título foi pensado para que sua experiência seja única e marcante. O sucesso desta temporada é tê-las e tê-los conosco!

Andrea Caruso Saturnino
Diretora geral do Complexo Theatro Municipal

Alessandra Costa
Diretora Executiva da Sustenidos