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26 de August de 2021

María de Buenos Aires, única ópera de Astor Piazzolla, estreia em setembro nas comemorações de 110 anos do Theatro Municipal de São Paulo

A trama da prostituta, vítima do submundo portenho que morre e renasce para dar à luz, ganha montagem com concepção e direção geral do cineasta Kiko Goifman; a obra estreou em 1968, na capital argentina, e se destaca pelo tom surreal, satírico, com o uso de elementos místicos, mitos e lendas; o contexto de miséria, com seus tipos marginais, é representado nessa montagem por grandes telões e convidados especiais como as atrizes da grife DASPU; a soprano Catalina Cuervo interpreta a anti-heroína.
Foto: Ariel Bravo

 

No dia 10 de setembro, sexta-feira, às 19h, o Theatro Municipal de São Paulo retoma sua temporada lírica após quase dois anos de interrupção, com a estreia da ópera María de Buenos Aires, composta pelo prestigiado músico argentino Astor Piazzolla (1921-1992) e seu contumaz parceiro, o poeta de origem uruguaia Horacio Ferrer (1933-2014). Batizada de ópera-tango, ou operita como preferia Piazzolla, é a única obra no gênero do celebrado bandoneonista e compositor de tangos.  A soprano Catalina Cuervo interpreta a protagonista, o barítono Gustavo Feulien é opayador (espécie de repentista) e a narração do Duende é do ator Rodrigo Lopez. Os solos de bandoneón ficam por conta de Milagros Caliva, musicista argentina virtuose no instrumento.

A montagem, com concepção e direção cênica de Kiko Goifman, celebra os 110 anos do Theatro Municipal e o centenário de Piazzolla. Acompanham as récitas a Orquestra Sinfônica Municipal, sob direção musical de Roberto Minczuk, maestro titular do grupo que se revezará com Alessandro Sangiorgi na regência das récitas, o Coro Lírico e convidados como as atrizes da grife DASPU. Orquestra e Coro estarão no palco, junto a solistas e todo elenco. Em cumprimento aos protocolos de segurança sanitária, o fosso, onde geralmente fica a Orquestra, não será utilizado, o que acabou se transformando em opção estética pelo diretor. As apresentações seguem até 19 de setembro e ao todo serão oito récitas. Nos dias úteis, às 19h, e nos finais de semana, às 17h. Os ingressos custam a partir de R$ 20 e estão à venda pela internet.

Para Andrea Caruso Saturnino, diretora geral do Theatro Municipal, a montagem promove o encontro da ópera de Piazzolla com o cinema, com cortes de imagens e edições ao vivo, sob a direção do talentoso cineasta Kiko Goifman. “É a primeira vez que o Municipal engendra pelo caminho do que podemos chamar de cine-ópera, proporcionando uma expansão das linguagens e reiterando a importância de oferecermos experimentações e inovações artísticas ao público”, afirma.

Estreada em 8 de maio de 1968, na capital argentina, María de Buenos Aires segue encantando nos palcos desde então. É uma ópera curta, com 85 minutos de duração e dois atos. Mas o formato econômico guarda proposta original e ousada, que conjuga enredo de toques surrealistas, lances místicos e apelo popular e zombeteiro. A música, analisa o crítico português Bernardo Mariano, combina o típico estilo de Piazzolla, de “tangueros” vários, os gêneros precursores do tango, como a milonga e o canyengue, com aquele criado pelo compositor, chamado de novo tango. “Nota-se ainda a citação e a paródia de gêneros de música ligeira populares em Buenos Aires e de música de rua típica do tempo, por vezes sobre formas vindas da música erudita”, completa. Na riqueza da obra, há a influência do “music-hall” americano, do teatro musical europeu, em especial nas colaborações de Kurt Weill e Bertolt Brecht, e até do cinema. Na trama, acompanha-se a vida e morte da prostituta María, com direito a uma maternidade inesperada, enquanto vaga pelo submundo da cidade e seus tipos notívagos. O tom surreal e místico da ópera, junto à fama de seu autor, parecem impulsionar constantes remontagens e concepções cênicas versáteis. Apenas na Europa, de maio para cá, foram cinco versões. Uma delas, no festival francês Nuits de Fourvière, utilizou tom circense e acrobatas.

María de Buenos Aires é uma obra única, que se destaca muito de outras óperas do próprio Piazzolla, porque possui a força no tango nuevo, um toque rítmico com harmonias e melodias muito especiais”, afirma o maestro Roberto Minczuk, diretor musical da montagem. Para ele, a instrumentação é peculiar, porque além do uso dobandoneón, Piazzola faz utilização da guitarra elétrica e percussão com tônicas fortemente jazzísticas, algo bem incomum em composições operísticas.

Na empreitada do Theatro Municipal, a tônica é a da tecnologia, com o uso de grandes projeções no palco, aliadas aos cantores líricos, intérpretes e bailarinos. “Nada mais natural do que trabalhar com imagens para alguém que vem do cinema como eu”, diz Kiko Goifman, premiado cineasta em atividade desde os anos 90. “Mas é uma opção também por se tratar de um espetáculo em plena pandemia”. Desse modo, em vez de grande elenco em cena, um enorme telão ao fundo projeta tomadas pré-gravadas. São cenas noturnas de metrópoles como a portenha, mas em especial de São Paulo, com a ideia de apontar que a história poderia ocorrer em qualquer cidade da América Latina. Mescladas a elas, há imagens metafóricas que remetem à embriaguez, questão central da obra para Goifman. Ainda, a esse universo visual se somam detalhes que o próprio diretor, presente em todas as récitas, registra ao vivo com quatro câmeras.

Convidado pela direção do Theatro, Goifman faz sua estreia no universo cênico em tal escala, desafio que para ele se justifica pela obra proposta. “Nos meus filmes, o interesse sempre foi pelas criaturas, personagens da noite, e é nesse ponto que me identifico com a figura da prostituta María e seu entorno, o ambiente noturno boêmio de Buenos Aires”. Seu mais recente documentário Bixa Travesty, sobre a artista transgênero Linn da Quebrada, recebeu prêmios no Festival de Brasília de 2018.

Daí ele trazer para a montagem outra atração com espírito radical. Na extremidade direita do palco se estabelece o chamado espaço DASPU, conhecida grife carioca de roupas femininas voltada para prostitutas, criada em 2005. Ali, à frente de outro telão com projeções de objetos recobertos de pelúcia, quatro convidadas do coletivo realizam performances individuais. Parceiras do diretor em projetos anteriores, algumas são prostitutas e foram chamadas por ele para abordar uma temática necessária aos dias atuais do país. “Elas são filhas de María e representam um tabu, como muitos dos temas de meus filmes”, explica. “Ao dirigir uma ópera nesse momento triste da cultura no Brasil é fundamental que se tenha coisas essenciais a dizer, discutir”. Como um último, mas não menos sugestivo núcleo, há o chamado circo dos analistas. A tradição da psicanálise tão difundida na Argentina foi adotada por Piazzolla em tom de crítica cínica ao método clínico, quando María, já falecida, passa a ser analisada. Para representar a passagem, Goifman usa elementos circenses, presente no conceito original da montagem, mas explorado em maior grau pela direção.

Complementa a cena a soprano Catalina Cuervo, o barítono Gustavo Feulien e o narrador Rodrigo Lopez, que desempenha o papel do irreverente Duende, além do Coro Lírico e dos bailarinos Grécia Catarina, Uátila Coutinho e Yasser Alejandro, integrantes do corpo artístico do Balé da Cidade de São Paulo. A escolha, segundo ele, remete à origem africana do nome tango, instrumento percussivo como um tambor. A dupla masculina representa ainda a tradição inicial da dança, realizada apenas por homens, daí o fato de olharem em direções opostas. “É uma tradição que foi sumindo numa sociedade machista”. Na concepção musical, com formação original de apenas onze músicos, a orquestra sai do fosso e ocupa o canto esquerdo da cena. Além de bandoneón e piano, uma guitarra moderniza e confere conceito amplificado à ópera, explica Goifman. “Assisti ao registro de diversas montagens e cada uma privilegia um ponto, como a dança ou o teatro; arrisco dizer que a minha é uma cine-ópera, uma ópera que namora o cinema.”

O figurino assinado por Adriana Vaz é marcado por roupas sensuais com predominância do preto e branco, para homens e mulheres, fazendo alusão ao universo das noites urbanas. A exceção é María, que se destaca pelas peças marcantes em vermelho. Com elementos contemporâneos da DASPU, mesclando estilos que marcaram o século 20.

Resumo da ópera

Meia-noite em Buenos Aires. El Duende, uma personagem mítica, sintetiza o perfil de María, operária que se torna cantora e depois prostituta: “nascida em um dia em que Deus estava bêbado e de mau humor”.  Em um ambiente sórdido de favelas portenhas, ela convive com tipos da miséria boêmia, encontra com o poeta e narrador duende e é seduzida pela música do tango. Em uma armadilha, ela passa a cantar em um cabaré para em seguida se prostituir, até que por fim morre. Seu espírito, no entanto, continua a vagar pelo ambiente de marginais e todo tipo de escória, até que milagrosamente renasce e dá à luz uma menina, de nome também María. Dessa forma, está condenada a um ciclo eterno de repetição de seu destino.