Theatro Municipal
20/11/2021 • 11h
É a partir da inquietação da dramaturga e atriz Dione Carlos, ao se deparar com o apagamento histórico da biografia da personagem Maria D’Apparecida Marques, que surge o espetáculo apresentado em nosso palco no próximo dia 20. Em diálogo com o Dia da Consciência Negra, Dione encena sobre a vida desta cantora lírica, a primeira negra a se apresentar na ópera de Paris.
[Theatro Municipal – Sala de Espetáculos]
“Ocupação Maria D’Apparecida – Movimento nº 1”
Luiz Fernando Marques (Lubi), direção cênica
Marly Montoni, Dione Carlos e Rodrigo Mercadante, intérpretes
Fábio Leandro, pianista
Programa
Com exibição de trechos do filme-espetáculo Maria d’Apparecida: Luz Negra
BADEN POWELL
A Volta
WALDEMAR HENRIQUE
Tamba-tajá
WALDEMAR HENRIQUE
No Jardim de Oeira
GEORGE BIZET
Seguidilla – Ópera Carmen
GEORGE BIZET
Habanera – Ópera Carmen
JOSÉ BARRENSE DIAS
Sonho Enfumaçado
Ingressos R$10 a R$40
Classificação Livre
Duração total 60 minutos
Pensando, sempre, na proteção de nosso público, colaboradores e artistas, tendo em vista os cuidados quanto à transmissão da Covid-19, para assistir a este espetáculo é necessário seguir os protocolos de segurança estipulados em nosso Manual do Espectador (acesse aqui), que incluem, a partir de 11 de novembro, a apresentação do comprovante de vacinação.
Programa sujeito a alteração.
Saiba mais sobre a apresentação:
Maria d’Apparecida Marques nasceu em 17 de janeiro de 1935, no Rio de Janeiro, filha de uma empregada doméstica com o filho dos patrões. Órfã de mãe aos sete anos de idade, foi criada pela família do pai, sem nunca ter sido registrada com o sobrenome da família, embora tenha recebido uma educação formal privilegiada.
Trabalhou como professora primária e locutora de rádio. Atuou como atriz no Teatro Experimental do Negro, de Abdias Nascimento. Estudou no Conservatório Brasileiro de Música, com o desejo de seguir carreira como cantora lírica. Impedida de atuar profissionalmente no Brasil pelo fato de ser negra, resultado direto do racismo estrutural brasileiro , partiu para a França, onde estabeleceu residência e construiu uma carreira sólida e reconhecida, tendo interpretado uma inesquecível Carmen, na famosa ópera de Bizet, em Paris.
Apesar do sucesso, nunca desistiu da cidadania brasileira, talvez embalada pela esperança de um dia voltar ao seu país. Ela costumava afirmar em entrevistas: “Havia um slogan no meu país quando eu fui embora: “Brasil, ame-o ou deixe-o”, eu disse: Amo-o e deixo-o”. Em 1965, Maria pôde experimentar um pouco desta alegria ao realizar uma apresentação no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, onde interpretou a sua celebrada Carmen.
Depois de sofrer um acidente de carro, passou a gravar músicas brasileiras ao lado de Baden Powell e Vinicius de Moraes, que a convenceram a empregar sua bela voz em canções populares. Gravou canções de grandes compositores como: Villa-Lobos, Waldemar Henrique, Heckel Tavares e Jaime Ovalle. Recebeu diversos prêmios e honrarias. Gravou cerca de vinte discos. É considerada musa do pintor surrealista Félix Labisse, tendo sido retratada em cerca de quinze telas do pintor.
Em 04 de julho de 2017 foi encontrada morta em seu apartamento, sozinha, aos 92 anos de idade, em Paris. Seu corpo permaneceu cerca de dois meses no necrotério, sem que ninguém reclamasse por ele. A escritora Mazé Torquato Chotil escreveu o livro Maria d´Apparecida – Une Marie pas comme les autres (Uma Maria diferente das outras), biografia da cantora, publicada na França, em 2019 e que será lançada no Brasil, traduzida para o português, em novembro de 2020. O valor arrecadado com a venda do mesmo servirá para trasladar o corpo da cantora para onde está sepultado o pintor Félix Labisse.
“Alfange
Não se cala uma mulher
com máscaras-nem de ferro, nem de flandres.
Sua verdade é lâmina afiada,
Rompe todas as mordaças”.
Neide Almeida, poeta.
“Você tem uma bela voz, mas você é negra. Negra não canta no teatro Municipal”, me disse um ítalo-brasileiro. Este é o evento que deflagrou a mudança na trajetória de Maria d’Apparecida, descrito pela mesma durante uma entrevista gravada. “Abandonei pátria e família”, palavras dela também, ao relembrar sua decisão de tentar a vida na Europa. Esta é a “porta de vidro” erguida e mantida pelo racismo estrutural, descrita pela psicanalista, escritora e artista Grada Kilomba, em seu Memórias da plantação.
Nosso projeto visa realizar uma “desobediência poética” diante desta estrutura, ao trazer para a cena a narrativa de uma artista negra invisibilizada, apagada do registro oficial. “Trincar o vidro” para que as potências atravessem o tempo. Refletir sobre as “escrevivências” que nos cercam, base de pensamento e ação tão bem realizada pela escritora Conceição Evaristo e que nos convoca poeticamente a atuar na raiz do problema: Criar narrativas geradoras de outros imaginários. Não é possível sonhar com o que desconhecemos, Maria d’Apparecida se lança ao desconhecido para tentar se conhecer. No momento em que esbarra na “porta de vidro”, distante da cordialidade brasileira, que admite uma filha bastarda permanecer na casa da família sem o reconhecimento legal do pai, Maria entende que é e sempre será, aos olhos colonizados, uma mulher negra, alvo de um olhar “ex-ótico”, que impõe estereótipos onde não se reconhece. Neste sentido, reunir uma equipe com artistas de diferentes origens, é, também, exercitar um novo olhar, de aprendizado sobre a presença de um corpo negro em cena, um exercício de observação e escuta para que vozes, por tanto tempo silenciadas, possam finalmente acontecer.
Maria atuou como atriz no Teatro Experimental do Negro, fundado por Abdias Nascimento, um economista, depois transformado em ator, diretor, pensador de teatro, ao deparar-se com uma peça de teatro na qual uma personagem negra era interpretada por um ator branco. A peça era O imperador Jones, do dramaturgo americano Eugene O’Neill, que por sua vez, liberou os direitos da peça para que Abdias a encenasse com um ator negro: Aguinaldo de Oliveira Camargo. Por aqui, no Brasil, as personagens negras eram descritas na dramaturgia ora como obedientes serviçais, ora como rebeldes selvagens, aproveitadores por natureza. Sempre como uma ameaça. Um imaginário criado pela sistema global de colonização, que decidiu “quem poderia falar” ou, na verdade, quem seria ouvido.
Maria é a voz que atravessa os furos da máscara de Flanders de Anastácia, é a voz que insiste em existir e o faz através da música, ora lírica, ora popular. Cercada por um universo imagético branco, emerge como potência artística em plena negritude e denuncia a ausência de presenças negras como ela, no universo da ópera. Carrega continentes em seu corpo diaspórico. Como diz a escritora caribenha Audre Lorde: “E quando nós falamos, temos medo que nossas palavras nunca serão ouvidas, nem bem-vindas, mas quando estamos em silêncio, nós ainda temos medo. Então é melhor falar, tendo em mente que não éramos supostas sobreviver”. Estas são algumas das reflexões que fundamentam a decisão de escrever e encenar uma peça sobre Maria d’Apparecida, uma mulher que nasce no famigerado quartinho de empregada da “casa de família”; estuda nos melhores colégios como bastarda adotada pela própria família de sangue; batizada com o nome de uma Santa Negra, da Padroeira do Brasil; professora primária sem vocação; atriz no Teatro Experimental do Negro (Talvez em busca de papéis à altura do seu talento); radialista (A voz no comando, sempre a voz); cantora lírica (a primeira cantora lírica negra a cantar na Ópera de Paris); intérprete de grandes compositores da música erudita e popular brasileira; musa de pintor surrealista (O pintor francês Félix Labisse, que a retratou em cerca de quinze quadros, sempre como uma mulher de pele azul, talvez por perceber a dor que o racismo causava em sua modelo artística, na verdade, sua amante, seu amor, tendo, inclusive, morrido nos braços da mesma); Musicoterapeuta exemplar, tendo desenvolvido um trabalho com crianças com autismo quando ainda nem se falava em autismo; reconhecida com o prêmio Orfeu de Ouro da Academia Nacional de Disco Lírico de Paris, condecorada com a Medalha da Legião de Honra, entregue pessoalmente pelo presidente francês François Mitterrand; enamorada e quase noiva de um membro da família real belga; isolada na velhice, morta de causas naturais em um apartamento em Paris, esquecida por cerca de dois meses em uma gaveta de necrotério, ignorada pelo seu país de origem, resgatada por um grupo de franceses e brasileiros que mal a conheciam e enterrada sem nenhum reconhecimento público.
Quantas Marias d’Apparecidas couberam em um único corpo?
Quantas Marias d’Apparecida mais teremos que resgatar do apagamento histórico causado pelo racismo estrutural no qual estamos imersos, inclusive nós, artistas, cuja responsabilidade diante disto é ainda maior e mais severa, posto que trabalhamos com narrativas e imaginários? Até quando ignoramos a ausência de corpos múltiplos nas Artes, nos lugares de decisão? Quantos talentos mais serão perdidos?
Maya Angelou, poeta, escritora, atriz, militante negra, nos lembra: “Você é o sonho das suas ancestrais”.